sábado, 28 de janeiro de 2023

Origens do Nheengatu

QUAL É A RELAÇÃO ENTRE O NHEENGATU COM A LÍNGUA GERAL E COM O TUPI ANTIGO?

 

Trago uma importante questão. João Batista Martins da Costa, autor de “Noções da Gramática de Nheengatu”, ao defender na introdução desse livro que o nheengatu é uma língua independente, afirma algumas teses diferentes das habituais e difíceis de comprovar. São elas:

O nheengatu não evoluiu a partir do tupi antigo. Trata-se de uma língua tupi-guarani com uma gramática mais “simples” (para o ponto de vista do lusófono).

É o contrário. Foi o nheengatu que expandiu para a costa e recebendo a influência de antigas línguas locais, acabou se complexificando e se desenvolvendo em tupi antigo.

A língua geral é distinta do nheengatu. Aliás, os habitantes amazônicos até tiveram dificuldade em assimilá-la.

Portanto, o nheengatu é uma língua independente tanto do tupi antigo quanto da língua geral. Em conversa no grupo de Whatsapp CPD, no dia 26 de janeiro de 2022, obtive as seguintes contestações às teses acima. Nas palavras do linguista Thomas Daniel Finbow, da USP:

 

1º O nheengatu não evoluiu a partir do tupi antigo. Trata-se de uma língua tupi-guarani com uma gramática mais “simples” (para o ponto de vista do lusófono).

 

Resposta literal de Finbow (2022):

Do ponto de vista da linguística histórica, o grau de complexidade gramatical relativa entre duas línguas não é relevante para determinar parentesco.

É indubitável que o nheengatu seja uma língua TG. É a única maneira convincente de explicar a imensa quantidade de itens lexicais e gramaticais em que podemos observar correspondências fonológicas regulares.

No entanto, as diferenças marcantes em vários aspectos da gramática, quando comparados com outras línguas TG, p. Ex., pronomes livres para objetos diretos, sem hierarquia de pessoa, ausência de “modo permissivo”, ausência de vários afixos derivacionais (-pyr, -ndûar, -(r)amo,   (t)emi-, etc., entre muitos outros) e vários elementos gramaticais (sem asé, sem oré, sem -ram e -ne, sem gerúndio, etc.), indicam que a evolução estrutural do nheengatu foi diferenciada no que diz respeito às demais línguas TG. Apenas o Kokama apresenta divergências estruturais do protótipo TG maiores.

O fator crucial foi o contato linguístico e substituição linguística (aliás, algo bem parecido com o que aconteceu com o português brasileiro).

 

2º É o contrário. Foi o nheengatu que expandiu para a costa e recebendo a influência de antigas línguas locais, acabou se complexificando e se desenvolvendo em tupi antigo.

Resposta literal de Finbow (2022):

Esta hipótese não procede. Primeiro, é totalmente contrária ao relatos contemporâneos. Não existe nenhum registro de uma língua como o nheengatu nas fases iniciais da presença europeia, mas o tupi antigo está plenamente documentada por múltiplas fontes em diversas regiões e por povos europeus diferentes (portugueses, espanhóis, franceses, alemães, holandeses, ingleses).

Nada estruturalmente parecido com o nheengatu foi documentado antes do século XIX.

Em segundo lugar, a arqueologia e a genética demonstram a antiguidade da presença de povos TG (Tupi-Guarani) no litoral. Falantes de nheengatu não precisam ter uma ascendência vinculada a grupos de língua TG (no Rio Negro, o substrato linguístico e cultural dos falantes de nheengatu é totalmente Arawak; nunca teve povos indígenas de língua TG por lá).

Alguns outros problemas com a hipótese de que o nheengatu evoluiu para o tupi antigo, são:

1) Se fosse o contato com outras línguas que converteu o nheengatu em tupi antigo, como explicar a uniformidade estrutural do tupi antigo, apesar de estar em contato com línguas indígenas totalmente diferentes em cada região do futuro Brasil? O contato com o puri, o coroado, o guaianã, etc., no sul, não poderia gerar o mesmo sistema gramatical do que o nheengatu no norte, em contato com línguas caribe, aruaque, etc.

2) Seria muito surpreendente ver um sistema totalmente coerente emergir em que os elementos que observamos operando consistentemente no tupi antigo que não tem correspondente algum no nheengatu, p. Ex., o -i- do objeto direto, a separação de reflexivo e recíproco a partir de -yu- em nheengatu, o desenvolvimento do -a nominalizasse, o sistema complexo de marcadores de complemento, com hierarquia de pessoa, a partir de pronomes livres num alinhamento nominativo-acusativo.

Também seria muito curioso os fósseis não produtivos que observamos no nheengatu, p. ex., (t)embi’u, (t)emiriku, yutima < -nho-tym, yumũ < nh-ybõ, etc., que não têm função alguma em Nheengatu, mas que são plenamente produtivos no TA (Tupi Antigo).

 

3º A língua geral é distinta do nheengatu. Aliás, os habitantes amazônicos até tiveram dificuldade em assimilá-la. Portanto, o nheengatu é uma língua independente tanto do tupi antigo quanto da língua geral.

Resposta literal de Finbow (2022):

“Língua geral” significa “língua franca”, ou seja, é um nome que se refere a uma função de uma língua e não a um tipo estrutural. Tanto o tupi antigo como o nheengatu tinham essa função na Amazônia em momentos diferentes.

Não tem nada que você possa esperar tipologicamente de uma “língua geral”. Não foram as transformações estruturais que “fez” o TA “se convertesse em” LG (Língua Geral) e outras mudanças que fizeram com que a LG passasse a ser nheengatu.

Quando João Daniel culpa os tapuias pela corrupção da “LG verdadeira dos tupinambá” ele revela que todos na colônia usam essa variedade. Só os padres que cultivavam ainda o TA anchietana sabiam que alguma vez a língua fosse diferente.

Os portugueses não começaram a usar o termo língua geral até o século XVII, quando o tupi antigo assumiu essa função nas missões em que os moradores não eram nativos em alguma língua TG com bom grau de inteligibilidade com o TA.

Bettendorf, por exemplo, chama os Guajajara de “índios da língua geral”. O Guajajara sequer é do mesmo subgrupo de TG que o TA e os Guajajara eram identificados como distintos dos Tupinambá amazônicos desde o começo da ocupação portuguesa. Bettendorf também chama povos que sequer foram contatados pelos missionários pelo mesmo nome. Ou seja, esses indígenas não tinham tido nenhuma oportunidade ainda de adquirir o TA na catequização e eles já eram “índios da língua geral”. Logo, “LG” não é simplesmente equivalente a “TA”.

Daí, nessa última questão, o autor não está enganado quando afirma que o nheengatu é independente do TA e da LG. Porém, é a mesma independência que o português moderno tem frente ao português clássico. São “línguas diferentes”, no sentido de que o sistema atual não depende do sistema anterior, apesar de que existam numerosas heranças.

 

Referência:

COSTA, João Batista Martins. Noções da Gramática Nheengatu. Tupi amazônico. Servgrafica, 2011(?).

FINBOW, Thomas Daniel. Teses sobre o nheengatu. Whatsapp: aplicativo de mensagem instantânea. 26 jan. 2022.

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